Seu Zé Baiano, Tia Gertrudes e Dona Ione

Seu Zé Baiano, Tia Gertrudes e Dona Ione
*
Salve a tríplice aliança do subúrbio interiorano! Reis das simpatias, mestres da conversa alheia, embaixadores do sossego, soberanos da vizinhança.
Num mundo onde a violência aumenta e a tradição é renegada a tão rica cultura suburbana é, muitas vezes, vítima de esquecimento e depredação. Nas cidades próximas das capitais a cultura suburbana vem sendo alterada em decorrência do aumento da violência, da paranóia e do tráfico de “tóchicos”, fato que ocasionou um aumento do emprego de “benzadeus” nas conversas alheias. Já no interior, onde ainda encontra-se o sentimento de segurança, é possível descobrir progenitores de simpatias esquecidas e costumes muito pouco difundidos e em risco de extinção, é nesse contexto que surgem Zé, Gertrudes e Ione.
Seu Zé Baiano, um senhor de idade aparentemente abatido e que passa o dia inteiro de cócoras observando a rua, é notavelmente a pessoa mais ativa da vizinhança, o faz-tudo do quarteirão e, sem dúvida, um mestre das simpatias. Todo dia acorda bem cedo para queimar sua pilha de folhas. Até onde me lembro Zé tinha um enorme quintal de terra batida onde se podia encontrar de tudo: de ferramentas enferrujadas a mudas de tempero e ervas para simpatias. Era rotina na rua ouvir Zé Baiano lançar frases do tipo: “e dái que tem uma cobra no seu jardim? Dexa a bichinha lá. Diz que é sinal de sorte”, “esse chá é uma beleza fia, cura até oio gordo!”, “a carcaça mais cedo ou mais tarde vai feder...” e “as pessoa vão dá comida pras galinha e quando vê tá sem o dedo”. Graças a ele tomei chás de matos que nem sabia que existiam e nunca brinquei de Power Rangers na rua já que “brincadeira de mão” nunca dava certo.
Tia Gertrudes foi uma das minhas professoras mais queridas e uma suburbana das antigas.Sempre tentava nos passar uma mensagem ou contar um pouco da sua experiência de vida que, como dizia ela, não era pequena. Tinha a péssima mania de adentrar no banheiro masculino de surpresa dizendo “vamos guardar os passarinhos aí!”, fato que me fez aprender a trancar as portas dos sanitários. Presenteava a classe com pérolas do tipo: “mamãe disse que nos nós amássemos, e não que nos amassemos”, “minha vó dizia que se a galinha cantou, é porque boto ovo. Se eu pegar alguém cacarejando na prova, vai fazer ter que fazer força até botar um” e “Vocês tão confundindo sopa de cebola com rebolado da crioula”. Morria de medo do que poderia resultar a “manguaça” do motorista da condução que levava os alunos até a escola e dizia que a sala era uma “quizomba”. Sua confiança nos alunos, muitas vezes confundida com ingenuidade, e suas palavras de sabedoria marcaram minha vida dentro e fora da escola.
Dona Ione era (e ainda é) minha tia avó e o poço de sabedoria da rua onde mora. Sua casa tinha um quintal enorme onde as visitas colhiam os frutos da enorme jabuticabeira que lá havia. Dona Ione morria de medo de ficar sozinha e por isso sempre chamava uma vizinha, no horário das refeições de preferência, para conversar um pouco e para escapar da necessidade de fazer o almoço. Se um dia você visitar Dona Ione a primeira coisa que vai notar é coleção de pratos com salmos na parede da sala: são tantos que quando pequeno achava que toda a Bíblia poderia ser lida naquela parede maculada. Os pratos com salmos são,para a vizinhança, motivo de inveja, para Ione, motivo de orgulho e para nós marco das glórias de um subúrbio em vias de extinção.
É uma pena que tanta cultura e experiência de vida sejam ignorados pela maioria. Afinal, o “subúrbio way of life” não é um retrocesso. A única coisa que peço é que cada um faça sua pequena parte na construção de um mundo melhor: deixando florescer a compreensão e o subúrbio que existe em cada um de nós.

**Esse texto foi escrito para um concurso desse site aqui ó: http://www.garotasquedizemni.com.br